A obesidade infantil tem diversas implicações para a saúde, e também sociais e econômicas, de longo alcance ao redor do mundo, além de afetar desproporcionalmente as populações desfavorecidas. A dupla carga da má nutrição (a coexistência de desnutrição e obesidade), que agora é altamente prevalente em países de baixa e média renda, é impulsionada por condições sociais injustas, como pobreza, habitação inadequada, instabilidade alimentar e falta de cuidados de saúde.
As interações mãe-filho de alta qualidade durante os primeiros 2.000 dias, desde a concepção até os 5 anos de idade, são consideradas cruciais para prevenir o desenvolvimento da obesidade durante os primeiros estágios da vida. No entanto, estas relações são influenciadas por estruturas mais amplas de nível comunitário, sociocultural, econômico e político, que estão envolvidas na definição dos desfechos de desenvolvimento infantil, incluindo a nutrição.
Capturar as influências mais proximais no risco de obesidade à medida que as crianças fazem a transição entre idades e estágios que ocorrem nos primeiros 2.000 dias requer a aplicação de uma perspectiva de desenvolvimento infantil. No entanto, até o momento, não foi adotada uma abordagem holística do curso de vida para a prevenção da obesidade infantil que inclua uma perspectiva equitativa de desenvolvimento infantil. Isso é preocupante porque as evidências indicam que centenas de milhões de crianças menores de 5 anos correm o risco de não atingir seu pleno potencial devido ao impacto dos riscos de desenvolvimento na saúde, bem-estar e produtividade ao longo da vida.
Nessa perspectiva, estudo publicado em 2020 apresenta fundamentação para ressignificar a narrativa da infância, integrando uma abordagem de cuidados em nutrição equitativos para a prevenção da obesidade infantil. Quatro elementos-chave para reformular a narrativa incluem:
(a) extensão do foco dos atuais primeiros 1.000 para 2.000 dias (da concepção aos 5 anos de idade);
(b) destaque para a importância de conexões mutuamente responsivas entre cuidadores e crianças até os 5 anos de idade;
(c) reconhecimento de racismo e fatores estressantes relacionados, não apenas raça/etnia, como parte de experiências infantis adversas e determinantes sociais da obesidade; e
(d) abordagem de equidade, desenhando intervenções em conjunto com famílias e comunidades socialmente marginalizadas.
O Modelo de Cuidados em Nutrição (WHO Nurturing Care Framework) da Organização Mundial da Saúde (OMS) fornece a base para reformular a narrativa para compreender a obesidade infantil através das lentes de uma abordagem de cuidados em nutrição equitativos para o desenvolvimento infantil, com uma perspectiva de curso de vida. No entanto, existe uma lacuna entre o Modelo da OMS e a prática no que se refere à obesidade infantil.
Atualmente, o Modelo da OMS se concentra principalmente nos primeiros 1.000 dias, sem enfatizar suficientemente a continuidade de cuidados necessária para estabelecer padrões internacionais de alimentação mãe/cuidador-filho que levam a hábitos de vida relacionados ao peso saudável ao longo da vida. Evidências empíricas apoiam fortemente a importância de incluir uma abordagem de curso de vida desde o momento da concepção até os 5 anos de idade, que representa uma janela crítica para a prevenção da obesidade e a garantia de uma trajetória de peso saudável ao longo da vida. Do nascimento à primeira infância (os primeiros 1.000 dias), as crianças dependem em grande parte dos cuidadores para atender suas necessidades autorregulatórias, sendo só a partir dessa fase que a dependência mais intensa de cuidadores para suporte autorregulatório é reduzida e as crianças experimentam uma capacidade mais profunda de tomar suas próprias decisões e continuar aprendendo e usando habilidades de autorregulação.
Avanços conceituais recentes na prevenção da obesidade infantil mapearam vias de interação diádicas iniciais mãe-filho modificáveis, incluindo saúde mental perinatal, segurança do apego infantil, interações cuidador-criança na alimentação precoce e autorregulação infantil, vinculando o risco de obesidade materna e infantil. No entanto, a prevenção requer uma compreensão muito mais ampla das dinâmicas e caminhos que influenciam o estabelecimento de relações mãe-filho, além do contexto familiar. Portanto, a prevenção da obesidade infantil deve ser baseada em uma compreensão profunda dos níveis de influência que cercam a criança à medida que passam pelas idades e estágios de desenvolvimento que ocorrem nos primeiros 2.000 dias.
Além disso, a prevenção da obesidade no contexto de cuidados em nutrição deve incorporar um foco contextualizado nas iniquidades de saúde e nos determinantes sociais da saúde, abordando os níveis desproporcionalmente altos de obesidade entre grupos marginalizados, minorias étnicas e de baixa renda. O racismo estrutural, interpessoal, institucional e internalizado prejudica a saúde infantil. O reconhecimento do racismo, não apenas raça/etnia, como um fator-chave das iniquidades em saúde deve ser seguido por uma medição rigorosa e compromisso com a compreensão dos mecanismos pelos quais o racismo afeta a saúde. Estressores sociais, incluindo experiências adversas na infância, são determinantes sociais estabelecidos da obesidade na infância e ao longo da vida.
As soluções para promover a equidade devem ter como objetivo romper o isolamento e alinhar políticas, sistemas e condições sociais para abordar os determinantes sociais da saúde e avançar na adaptação e otimização de intervenções multissetoriais bem coordenadas. Essas soluções não podem ser geradas e traduzidas de forma eficaz sem o envolvimento ativo da comunidade e daqueles que podem ser tradicionalmente marginalizados socialmente para garantir que as intervenções sejam relevantes, acessíveis e viáveis para as famílias e comunidades pretendidas.
Uma estratégia é promover a equidade por meio de codesign de intervenção para envolver os membros da comunidade na capacitação baseada em participação ativa. Codesign é uma abordagem participativa em que as partes interessadas da comunidade desenvolvem inovações sociais de forma colaborativa. Essa estratégia ajuda intencionalmente a operacionalizar a equidade, pois se concentra em vozes e perspectivas que, de outra forma, seriam marginalizadas. Ele reconhece os processos históricos que levaram às estruturas de poder existentes que contribuíram para o acesso desigual aos recursos e a falta de participação na tomada de decisões críticas.
A teoria crítica da raça oferece várias estratégias-chave para promover a equidade racial, incluindo centrar as perspectivas, ideias e histórias de grupos socialmente marginalizados e desenvolver contranarrativas. Iniciativas anteriores de prevenção da obesidade com comunidades que vivenciam adversidades sociais fornecem informações valiosas sobre o que pode ser alcançado para melhorar o comportamento de saúde em vários níveis socioecológicos, embora muito trabalho ainda seja necessário para que as soluções sejam projetadas e lideradas por comunidades marginalizadas, onde mecanismos profundamente enraizados impedem a equidade na prevenção da obesidade infantil.
O estudo conclui que apesar dos esforços crescentes das últimas décadas para prevenir a obesidade infantil global, ainda é necessário reduzir o seu impacto desigual entre as populações carentes em todo o mundo. Segundo os autores, os esforços futuros para prevenir a obesidade infantil precisam ser diferentes para terem sucesso, buscando abordar de forma abrangente as adversidades e determinantes sociais até então negligenciados e incluir como esses fatores sociais impactam os primeiros 2.000 dias, além de delinear estratégias em parceria com as comunidades como um caminho promissor.
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