Complexidade e estigma de peso na obesidade infantil
O estigma do peso na infância e na adolescência pode afetar os indivíduos ao longo da vida. A alta prevalência de obesidade infantil é reconhecida como uma prioridade de saúde pública global, sendo assim importante entender como o estigma afeta o peso e a saúde de crianças e adolescentes com sobrepeso ou obesidade, incluindo aqueles com doenças genéticas raras associadas. Nesse contexto, foi realizada revisão narrativa sobre o estigma de peso na obesidade infantil e entre adolescentes.
A revisão envolveu pesquisa bibliográfica não sistemática usando três bases de dados eletrônicos (PubMed, Medline e Embase). Concentrou-se na literatura publicada em língua inglesa de janeiro de 2000 a fevereiro de 2021. Adicionalmente, foram consultadas as listas de referência de artigos de texto completo que atenderam aos critérios de inclusão para identificar quaisquer artigos adicionais de relevância.
Bullying e estigma de peso na obesidade infantil ainda são pouco estudados
Os termos de pesquisa incluíram: obesidade pediátrica, obesidade infantil, doenças genéticas raras associadas a obesidade, preconceito de peso, estigma de peso, discriminação com base no peso, provocação com base no peso, bullying com base no peso, preconceito do peso nos cuidados de saúde, estigma da obesidade, discriminação da obesidade e causas da obesidade, em diferentes combinações. Os estudos selecionados para inclusão na revisão concentraram-se no estigma de peso de obesidade infantil e em adolescentes, incluindo efeitos de longo prazo do estigma de peso na infância. Os critérios de inclusão adicionais incluíram estudos que discutem prevalência, consequências e intervenções propostas para o estigma de peso em ambientes relevantes para indivíduos, como escola, casa e centros de saúde. Após avaliação dos artigos que atenderam aos critérios de inclusão, para fornecer uma visão geral significativa do estigma de peso infantil, estes foram sintetizados em cinco seções temáticas: (1) prevalência e fontes de estigma de peso pediátrico, (2) fatores que contribuem para o estigma de peso pediátrico, (3) consequências do estigma de peso pediátrico, (4) estigma de peso pediátrico no ambiente de cuidado à saúde e (5) intervenções para reduzir estigma de peso pediátrico.
O estigma de peso é generalizado, afetando crianças, adolescentes e adultos com obesidade, bem como pais e cuidadores de crianças com obesidade. O estigma da obesidade infantil aumentou com a prevalência da obesidade, mas os efeitos profundos desse estigma não receberam o mesmo nível de atenção que as consequências clínicas, como doenças cardiovasculares, diabetes, e mortalidade precoce. Crianças com obesidade podem sofrer bullying, provocações e resultados adversos relacionados ao peso, incluindo baixa autoestima, transtornos depressivos, prejuízo ao desempenho escolar e ao envolvimento social.
Estigma de peso na obesidade infantil é maior entre os que buscam tratamento
Em relação à prevalência de estigma de peso, um estudo com alunos de 20 escolas relatou que 27% dos alunos relataram provocações relacionadas ao peso. A prevalência foi maior entre indivíduos que procuram tratamento para perder peso, sendo que 64% dos adolescentes que buscaram serviço para perda de peso sofreram estigma de peso. Dentre eles, 71% sofreram estigma na escola no último ano. O estigma de peso também foi persistente, com aproximadamente 80% dos adolescentes relatando estigma com duração > 1 ano e mais de 33% relatando estigma com duração ≥ 5 anos.
Ressalta-se que crianças e adolescentes com sobrepeso ou obesidade são mais vulneráveis a preconceito de peso e discriminação em comparação com seus pares, e as deficiências psicossociais podem dificultar o controle do peso por meio de comportamentos não saudáveis de controle de peso, como por exemplo dietas não saudáveis, criando assim um ciclo negativo de estigma e ganho de peso.
Pais e educadores também foram citados como fonte de estigma de peso na obesidade infantil
Em relação às fontes de estigma de peso, crianças e adolescentes com obesidade sofrem estigma de várias fontes, como colegas, educadores, pais, mídia e entretenimento e profissionais de saúde. Entretanto, muito do que se sabe sobre preconceito de peso, discriminação e estigma em crianças e adolescentes vem de pesquisas realizadas principalmente em relação ao ambiente escolar. Segundo dados de uma meta-análise, crianças com sobrepeso ou obesidade têm 19% e 51% maior probabilidade, respectivamente, de serem intimidadas por seus pares do que crianças sem sobrepeso ou obesidade. E 41% dos alunos do ensino médio que observaram a estigmatização de seus colegas relataram que o excesso de peso era a principal razão para o indivíduo ser vítima de bullying.
O estigma de peso é causado pelo desprezo comum pela complexa etiologia da obesidade, onde o sobrepeso e a obesidade são atribuídos à falha individual em força de vontade ou responsabilidade. A atual narrativa de saúde pública da obesidade concentra-se principalmente nos fatores comportamentais e ambientais que contribuíram para o aumento da prevalência da obesidade em todo o mundo. Tais fatores incluem avanços tecnológicos que permitem um estilo de vida sedentário, diminuindo assim o gasto de energia, bem como maior disponibilidade e acessibilidade relativa de alimentos ricos em energia, e marketing de alimentos não saudáveis, aos quais as crianças são o alvo principal. Os aspectos fisiológicos e biológicos da obesidade raramente fazem parte das narrativas de prevenção e controle da obesidade.
Apesar do aumento da prevalência de obesidade em todo o mundo, a suscetibilidade ao ganho de peso varia entre os indivíduos, sugerindo que existe um componente hereditário de sobrepeso e obesidade que interage com o ambiente. Sendo assim, os componentes genéticos da doença, que não estão relacionados às escolhas da criança ou do seu cuidador, são importantes para a discussão sobre prevenção e manejo da obesidade.
Obesidade ainda é vista como falha individual
Várias formas de obesidade genética foram identificadas em humanos, mas parece haver conhecimento e compreensão limitados das doenças genéticas raras associadas a obesidade, o que poderia contribuir para o estigma e impactar o acesso a intervenções e apoio para crianças e suas famílias.
O comportamento de comer excessivamente existe em um espectro que vai desde a indulgência ocasional associada a ocasiões especiais ou celebrações até a fome insaciável. Considerando que comer em excesso (comer em excesso hedônico e o comer compulsivamente) não se restringe a pessoas com sobrepeso e obesidade, distúrbios graves nos comportamentos alimentares estão associados à perda de controle sobre o consumo ou a condições clínicas ou genéticas subjacentes.
Comportamentos alimentares excessivos na infância aumentam o risco de obesidade e podem influenciar o desenvolvimento de distúrbios alimentares. Estudo com meninas adolescentes correlacionou o consumo alimentar na ausência de fome na infância aos 7 anos de idade com comportamentos de compulsão alimentar aos 15 anos. Além disso, crianças com obesidade relataram taxas mais altas de perda de controle e compulsão alimentar do que crianças sem obesidade. Até mesmo a gravidade da obesidade infantil pode estar associada a comer excessivamente ou a comportamentos alimentares desordenados. Ademais, as crianças com obesidade e comportamentos alimentares desordenados têm maior risco de obesidade na idade adulta ou futuros transtornos alimentares.
O comportamento alimentar mais severo é a hiperfagia, que é uma fome implacável associada a alterações físicas no hipotálamo ou variantes genéticas nas vias de sinalização de leptina-melanocortina hipotalâmica (doenças genéticas raras associadas a obesidade). Em crianças com obesidade grave de início precoce, a presença de hiperfagia deve alertar os profissionais de saúde para encaminhar os pacientes a um geneticista para avaliação de uma possível causa genética subjacente da obesidade. Consciência e compreensão das causas profundas da obesidade em crianças, incluindo comportamentos de comer demais, são essenciais para reduzir o estigma e apoiar as crianças e suas famílias afetadas por doenças genéticas de obesidade.
Efeitos psicológicos negativos resultam do estigma de peso na obesidade infantil
Evidências apoiam uma conexão entre a estigmatização de crianças e adolescentes com obesidade e efeitos psicológicos e emocionais prejudiciais de curto e longo prazo e extensivos a seus pais ou cuidadores. Tais efeitos incluem prejuízo psicossocial, diminuição da função executiva, redução da saúde qualidade de vida relacionada, comportamentos não saudáveis de controle de peso e controle de peso prejudicado. Estudos mostraram que esses efeitos negativos podem ocorrer independentemente da fonte do estigma. Essa posição marginalizada pode resultar em iniquidades sociais e acadêmicas para os adolescentes que vivem com obesidade, como ser excluído das redes sociais, ter menos amizades do que seus pares e ter menor desempenho ou participação na escola.
Com relação às consequências do estigma de peso para a saúde física, vários estudos mostraram que provocações baseadas no peso entre crianças e adolescentes estão associadas ao ganho de peso e prejudicam a manutenção da perda de peso em longo prazo. As provocações com base no peso também foram preditivas de futuros comportamentos alimentares não saudáveis, como compulsão alimentar, controle de peso não saudável e alimentação como mecanismo de enfrentamento. Também foi encontrada uma ligação entre as provocações na infância relacionadas ao peso e a alimentação emocional.
O ambiente de cuidado à saúde é um lugar-chave onde as crianças com obesidade podem encontrar estigma. O estigma de peso nestes ambientes pode ter sérias implicações na qualidade dos cuidados que crianças e adolescentes recebem. A maior parte das pesquisas sobre o estigma do peso em serviços de saúde envolve adultos com obesidade, e há poucas pesquisas no ambiente de saúde infantil. Uma pesquisa com enfermeiras pediatras e equipes de apoio clínico confirmou a presença de atitudes tendenciosas de peso em relação às características e comportamentos controláveis percebidos em crianças com obesidade. Sofrer o estigma de profissionais de saúde também pode afetar as decisões sobre cuidados de saúde de pais de crianças com obesidade, o que pode ter implicações graves para a saúde. Os profissionais de saúde devem evitar o uso de linguagem e práticas estigmatizantes e se esforçar para tornar suas práticas clínicas seguras e acessíveis aos pacientes.
Estigma de peso não ajuda o indivíduo a emagrecer e pode ter sérias consequências físicas e emocionais permanentes
O estigma da obesidade infantil é um problema generalizado que agrava as cargas já enfrentadas por crianças e adolescentes com obesidade e seus pais/responsáveis. Contribui para deficiências psicossociais, comportamentos alimentares pouco saudáveis e ganho de peso, e exerce uma influência negativa duradoura no controle de peso que continua na idade adulta. Apesar das evidências disponíveis, ainda existem lacunas de conhecimento substanciais. A narrativa atual da obesidade infantil concentra-se principalmente no estilo de vida, com pouca ênfase nas causas biológicas do ganho de peso, incluindo a genética. Os autores acreditam que a promoção de uma melhor compreensão da genética da obesidade e de sua complexa etiologia pode promover a redução do estigma, principalmente entre crianças e jovens afetados por doenças genéticas da obesidade.
Além disso, a amplitude da literatura sobre o estigma de peso está centrada em adultos. Embora a comunidade de saúde e os formuladores de políticas entendam melhor os efeitos negativos do preconceito e da discriminação de peso, houve um movimento no sentido de reconhecer e eliminar a linguagem e as práticas estigmatizantes. Os profissionais de saúde desempenham um papel importante na minimização do estigma associado à obesidade infantil através da identificação e diagnóstico precoce de doenças genéticas raras, reconhecimento e eliminação de preconceitos pessoais e interações positivas baseadas no cuidado centrado no paciente para crianças com obesidade e seus pais/cuidadores. Segundo os autores, mudanças sistemáticas na saúde, educação, políticas públicas e na mídia são necessárias para mudar a narrativa da obesidade e promover ambientes livres de estigma.