O Brasil, assim como muitos países, enfrenta atualmente um cenário de múltipla carga de má nutrição, caracterizado pela convivência entre desnutrição, excesso de peso, deficiências nutricionais e doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Este cenário pode ocorrer de forma simultânea nas mesmas comunidades, famílias e até em um mesmo indivíduo, trazendo impactos importantes para a saúde e qualidade de vida da população. Nesse contexto, a Atenção Primária à Saúde (APS) exerce um papel estratégico no monitoramento do estado nutricional e dos padrões alimentares da população, sendo fundamental para ações de prevenção e cuidado em todas as faixas etárias.
Compreender a prevalência e os determinantes das diferentes formas de má nutrição entre os indivíduos acompanhados na APS é essencial para orientar o planejamento de ações, programas e políticas públicas, tanto em nível individual quanto coletivo. Diante disso, um estudo de série temporal, utilizando dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) entre 2012 e 2021, analisou a cobertura do acompanhamento nutricional e as tendências das prevalências de desnutrição, excesso de peso e obesidade, por ciclo de vida, dos indivíduos atendidos na APS. O Sisvan coleta informações sobre o estado nutricional e o consumo alimentar da população atendida na APS, permitindo acompanhar a situação nutricional em todo o país.
Foram analisados dados públicos de crianças menores de 5 anos, crianças de 5 a 9 anos, adolescentes, adultos, idosos e gestantes. Os principais indicadores avaliados foram: prevalência de magreza/baixo peso, excesso de peso, obesidade e obesidade grave, conforme critérios do Ministério da Saúde. Além das prevalências, o estudo também calculou a cobertura do acompanhamento nutricional. Para analisar as tendências ao longo dos anos, foi utilizada a técnica estatística de regressão linear generalizada pelo método de Prais-Winsten.
No período analisado, observou-se uma redução nas taxas de baixo peso ao longo do tempo, com exceção de crianças menores de 5 anos e adolescentes. Em contrapartida, os dados apontaram um aumento expressivo das prevalências de excesso de peso e obesidade entre crianças maiores de 5 anos, adolescentes, adultos, idosos e gestantes atendidos na APS.
Em relação à cobertura do acompanhamento nutricional, houve uma queda entre 2019 e 2020, possivelmente como reflexo da pandemia de Covid-19 e do redirecionamento das ações da APS para o enfrentamento da emergência sanitária. Contudo, a tendência geral ao longo da década foi de aumento na cobertura, o que pode refletir esforços institucionais e políticas públicas voltadas à alimentação e nutrição no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Os dados reforçam o papel estratégico da Vigilância Alimentar e Nutricional não apenas para organizar o cuidado nutricional nos territórios, mas também para subsidiar políticas públicas sensíveis à realidade local. A permanência da desnutrição em crianças menores de 5 anos e o crescimento contínuo do excesso de peso e da obesidade em todas as faixas-etárias destacam a persistência da múltipla carga de má nutrição no país, um fenômeno impulsionado por transformações nos sistemas alimentares, hábitos alimentares e modos de vida da população, além de desigualdades sociais. Além disso, diante do aumento da insegurança alimentar e nutricional no país, é essencial que as equipes de saúde estejam atentas aos sinais da má nutrição e atuem de forma integrada para identificar e prevenir possíveis casos.
Os achados deste estudo contribuem para uma compreensão do cenário atual da má nutrição no Brasil e do uso de sistemas de informação, evidenciando a relevância de ampliar a cobertura e qualificar a atuação da APS com estratégias adequadas a cada fase do curso da vida. Os resultados ressaltam, ainda, a urgência da formulação e implementação de políticas públicas intersetoriais que enfrentem, de forma integrada, todas as formas de má nutrição e seus determinantes comuns.