A necessidade de remodelar o processamento global dos alimentos

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*Tradução do documento: “The need to reshape global food processing: a call to the United Nations Food Systems Summit”, para acessá-lo, clique aqui.

 

A necessidade de remodelar o processamento global de alimentos: uma chamada para a Cúpula dos Sistemas Alimentares das Nações Unidas

 

Introdução

A Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU acontecerá ainda este ano em um momento crucial. Os sistemas alimentares estão falhando em melhorar a saúde humana, a equidade social ou a proteção ambiental. Um sintoma é a pandemia de obesidade e doenças crônicas não-transmissíveis relacionadas a ela com suas vastas consequências. Como mostramos aqui, um dos principais impulsionadores dessa pandemia é a transformação no processamento de alimentos. No sistema alimentar moderno e globalizado, úteis tipos de processamentos de alimentos que preservam os alimentos, melhoram suas propriedades sensoriais e tornam a preparação culinária mais fácil e mais diversa, foram e estão sendo substituídos por tipos de processamentos deletérios, cujo objetivo principal é aumentar os lucros por criar produtos hiperpalatáveis e convenientes, que são imitações grosseiramente inferiores de alimentos minimamente processados e de refeições preparadas na hora. A Cúpula tem uma oportunidade única de enfrentar essa mudança calamitosa e de recomendar políticas e ações eficazes às agências da ONU e aos Estados membros.

Processamento e indústria

A questão principal aqui é a natureza, o propósito e a extensão do processamento de alimentos. Não o processamento em si. A crítica geral ao processamento de alimentos é muito inespecífica para ser útil. A maioria dos alimentos são processados de alguma forma, e as preparações culinárias de alimentos frescos são geralmente feitas com ingredientes processados. Alguns tipos de processamento de alimentos contribuem para dietas saudáveis, mas outros fazem o oposto.

Em um extremo estão os mínimos processamentos que principalmente preservam ou melhoram alimentos in natura, como secagem de grãos, leguminosas e castanhas, moagem de grãos para produção de farinha e de massas, resfriamento ou congelamento de frutas e hortaliças, pasteurização do leite e fermentação do leite em iogurte.

No outro extremo estão os processos industriais que convertem commodities alimentares, como trigo, soja, milho, óleos e açúcar, em substâncias alimentares transformadas química ou fisicamente, formuladas com várias classes de aditivos, geralmente baratas para se produzir, com longa validade e substitutos de alimentos minimamente processados e de refeições preparadas na hora. O resultado são alimentos e bebidas com marca, açucarados, gordurosos e/ou salgados que normalmente contêm pouco ou nenhum alimento in natura, que são desenvolvidos para serem prontos, consumidos a qualquer hora e em qualquer lugar e são altamente atraentes aos sentidos ou até quase viciantes. Esses produtos, incluindo bebidas adoçadas e aromatizadas, salgadinhos doces ou salgados, produtos de carne reconstituída e refeições e sobremesas congeladas ou com maior tempo de prateleira, são identificados como alimentos ultraprocessados.

As críticas à indústria de alimentos como um todo também são um erro. A maioria dos muitos milhões de empresas de agricultura, cultivo, produção, distribuição, venda e fornecimento de alimentos em todo o mundo, notadamente na Ásia, África e América Latina, lidam exclusiva e amplamente com alimentos frescos e minimamente processados. Esses negócios e os alimentos que eles produzem precisam ser incentivados, defendidos e apoiados.

Em contraste, os alimentos ultraprocessados são em sua maioria disponibilizados, produzidos e vendidos por um pequeno número de corporações transnacionais, algumas de cujos volumes de negócios excedem as receitas de muitos países e obtêm lucros anuais de bilhões de dólares. Essas corporações usam seu poder para formular, fabricar em massa, distribuir e comercializar agressivamente os seus produtos em todo o mundo.

Essas corporações moldam as descobertas científicas ao financiar pesquisas internas e universitárias, a fim de defender e promover alimentos ultraprocessados. Elas também exercem poder político por meio de lobby intenso, doações e patrocínios e, até agora, dissuadiram a maioria dos governos de regulamentar adequadamente seus produtos e práticas.

Dados de séries temporais de vendas de alimentos indicam o crescimento explosivo na fabricação e no consumo de alimentos ultraprocessados em todo o mundo. Inquéritos alimentares nacionais mostram que os alimentos ultraprocessados já representam 50% ou mais da ingestão de energia na dieta de países de alta renda, com consumo ainda maior entre crianças e adolescentes. Em países de renda média, eles agora representam entre 15 e 30% da ingestão total de energia, mas as vendas de alimentos ultraprocessados estão aumentando rapidamente nesses países.

A pandemia de obesidade e doenças relacionadas e sua ligação com o ultraprocessamento

De acordo com a OMS, a prevalência mundial da obesidade quase triplicou desde meados de 1970, e agora, mais de 650 milhões de adultos tem obesidade e 1,9 bilhões de adultos e mais de 370 milhões de crianças e adolescentes estão com sobrepeso ou obesidade (https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/obesity-and-overweight). Nenhum país ainda reverteu esses aumentos. Impulsionado de perto pelo aumento da obesidade está a duplicação da prevalência mundial de diabetes tipo 2 desde 1980, afetando agora cerca de 420 milhões de pessoas (https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/diabetes). Obesidade, diabetes tipo 2 e doenças não-transmissíveis relacionadas, incluindo doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer comuns, tornaram-se pandemias. Antes da COVID-19, os sistemas de saúde da maioria dos países não tinham a capacidade de tratar efetivamente as doenças influenciadas pela alimentação. Agora, muitos sistemas de saúde estão no limite de sua capacidade ou além dele, lutando contra a COVID-19, cuja gravidade é significativamente maior em pessoas com obesidade ou doenças relacionadas.

A evidência da saudabilidade geral dos padrões alimentares baseados em alimentos frescos e minimamente processados e em preparações culinárias, e sua proteção contra a má nutrição em todas as suas formas, “é notável por sua amplitude, profundidade, diversidade de métodos e consistência dos achados”.

Mas apenas na última década, com o advento do sistema de classificação de alimentos NOVA, que distingue alimentos ultraprocessados de alimentos minimamente processados ou processados, foi revelada a ligação entre as mudanças nos tipos de processamento de alimentos e a pandemia de obesidade e doenças relacionadas. As evidências incluem:

– Três meta-análises de resultados de estudos epidemiológicos, incluindo estudos do coorte grandes, de longa duração e cuidadosamente conduzidos, mostram associações dose-resposta entre o consumo de alimentos ultraprocessados e obesidade, obesidade abdominal, diabetes tipo 2, dislipidemias, síndrome metabólica, depressão, doenças cardio e cerebrovasculares e todas as causas de mortalidade.

– A análise de pesquisas nacionais sobre consumo alimentar ou compra de alimentos em países de renda média ou alta mostra que quanto maior a participação de alimentos ultraprocessados na alimentação, maiores são suas características nutricionais obesogênicas. Estes são caracterizados por maior densidade energética, açúcares livres, gorduras prejudiciais à saúde e sódio, e menor proteína e fibra.

– Estudos epidemiológicos e experimentais indicam que alimentos ultraprocessados podem aumentar os riscos de obesidade e doenças relacionadas de outras maneiras além da sua composição nutricional. Estes incluem propriedades estruturais e físicas que atenuam a sensação de saciedade, características organolépticas associadas a maior taxa de ingestão de energia, substâncias neoformadas e materiais de embalagem quem migram para os alimentos e que são desreguladores endócrinos, aditivos que promovem microbioma pró-inflamatório e efeito térmico reduzido que diminui o gasto total de energia.

– Um ensaio controlado aleatorizado do tipo cross-over mostra que consumir uma dieta altamente ultraprocessada causa um aumento significativo da ingestão calórica ad libitum e consequente ganho de peso. Durante um período de 2 semanas, 20 adultos jovens seguindo uma dieta com 83% de calorias de alimentos ultraprocessados consumiram aproximadamente 500 calorias a mais por dia do que quando seguiram uma dieta sem alimentos ultraprocessados. Os participantes ganharam 0,9 kg ao final das 2 semanas com dieta ultraprocessada e perderam 0,9 kg ao final da dieta não ultraprocessada, principalmente de gordura corporal.

– Um estudo ecológico longitudinal de 80 países de 2002 a 2016 mostra uma associação direta entre mudanças no volume per capita anual de venda de alimentos ultraprocessados e mudanças correspondentes no índice de massa corporal da população adulta.

Tomadas em conjunto, a totalidade de evidências resumidas aqui mostra, além de qualquer dúvida razoável, que o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados é o principal contribuinte para a pandemia de obesidade e doenças relacionadas. Também há evidências crescentes dos efeitos nocivos da indústria de alimentos ultraprocessados no planeta, por meio de sua demanda global por ingredientes baratos que destroem florestas e savanas, substituindo a produção da agricultura sustentável e sua fabricação e embalagem com uso intensivo de recursos.

Respostas da política

Para começar, a Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU deve impulsionar as autoridades nacionais e internacionais de saúde e de alimentação e nutrição a revisar seus guias alimentares para enfatizar a preferência por alimentos frescos ou minimamente processados e evitar alimentos ultraprocessados, de acordo com as diretrizes desenvolvidas, por exemplo, pela OMS/Organização Pan-Americana de Saúde, e lançadas em vários países latino-americanos, e agora também na França, Bélgica e Israel.

Ao mesmo tempo, os governos nacionais devem ser instados a usar medidas fiscais, regulações de marketing, ousados esquemas de rotulagem frontal obrigatória nas embalagens e políticas de aquisição de alimentos, todos concebidos para promover a produção, o acesso e o consumo de uma rica variedade de alimentos frescos ou minimamente processados, e para desestimular a produção, distribuição e consumo de alimentos ultraprocessados, como é feito hoje em vários países.

As atuais políticas de alimentação e nutrição destinam-se principalmente a incentivar os fabricantes de alimentos a reformular seus produtos, reduzindo o uso de sal, açúcar ou gorduras prejudiciais à saúde. Há um papel para regulamentações fortes que efetivamente limitem os níveis desses componentes, mas a reformulação por si só não transformará produtos ultraprocessados em alimentos saudáveis, como de fato reconhecido recentemente em um documento interno de uma corporação líder na produção de alimentos ultraprocessados – “algumas de nossas categorias e produtos nunca serão saudáveis, não importa o quanto renovemos” (https://www.ft.com/content/4c98d410-38b1-4be8-95b2-d029e054f492). As políticas deveriam, ao invés disso, estimular a indústria a manter, desenvolver ou melhorar métodos de processamento que prolonguem a duração de alimentos in natura, melhorem suas propriedades sensoriais e tornem o seu preparo culinário mais fácil e diversificado. Alimentos ultraprocessados devem ser substituídos por alimentos processados com níveis limitados ou sem adição de açúcar ou gorduras não saudáveis ou, preferencialmente, por alimentos minimamente processados.

Conclusões

Os sistemas alimentares estão falhando. Isso é mais claramente mostrado pelo que são agora as pandemias de obesidade e diabetes tipo 2, das quais os alimentos ultraprocessados são os principais determinantes. A Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU deve incitar os Estados membros a implementarem múltiplas intervenções políticas para reduzir a produção, distribuição e o consumo de alimentos ultraprocessados, ao mesmo tempo que tornam os alimentos frescos ou minimamente processados mais disponíveis, acessíveis e baratos.

 

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