No Brasil, a alimentação é um direito constitucional reconhecido como determinante da saúde a ser assegurado por meio de políticas públicas. Instituída em 1999 e atualizada em 2011, a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) organiza as ações de alimentação e nutrição no Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS). A consolidação, expansão e universalização das ações de alimentação e nutrição, com alcance em nível local por meio da APS ainda constituem um desafio.
Um estudo desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), da Universidade de São Paulo (USP) e do Ministério da Saúde (MS) teve como objetivo sistematizar o histórico das ações de alimentação e nutrição na APS, de 1999 a 2019, identificando os avanços no período e perspectivas atuais.
Foram analisados documentos publicados entre 1999 e 2020, que descreveram ou analisaram as ações de alimentação e nutrição do Governo Federal, disponíveis nas bases de dados PubMed, Lilacs, Web of Science e literatura cinza. Os documentos consistiram em normas, materiais técnicos e relatórios produzidos pela Coordenação Geral de Alimentação e Nutrição (CGAN), do Ministério da Saúde, ou em colaboração com a CGAN, e artigos científicos, teses e dissertações. As ações em alimentação e nutrição também foram avaliadas, baseando-se nos microdados da avaliação externa do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), de 2011, 2013 e 2017, e na cobertura do acompanhamento do estado nutricional (2008 a 2019), pelo Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN).
A primeira versão da PNAN foi elaborada e publicada em 1999, poucos anos depois da aprovação das Normas Operacionais Básicas de 1996 (NOB 96), da criação do Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e do Programa Saúde da Família (PSF). Revisou-se todo arcabouço normativo, técnico e operacional dos programas de suplementação de micronutrientes e do SISVAN compreendidos entre os anos de 2003 e 2006, perpassando a criação da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e a consolidação da Estratégia Saúde da Família (ESF). Alinhada ao perfil nutricional dos brasileiros, a PNAB (2006) estabeleceu como ações prioritárias a erradicação da desnutrição infantil, o controle do diabetes e da hipertensão, além de ressaltar a promoção da saúde e a atenção à saúde de crianças, das mulheres e dos idosos como ações estratégicas para operacionalizar a APS. Na evolução da APS, destaca-se também a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), em 2008, com base nos quais emergiram as publicações “Matriz de Ações de Alimentação e Nutrição na Atenção Básica à Saúde” e os “Cadernos de Atenção Básica”, voltadas ao NASF e à atenção nutricional.
Em 2011, tanto a PNAN quanto a PNAB foram atualizadas. Também foi instituído o PMAQ-AB, que apesar de apresentar poucos indicadores de alimentação e nutrição, contemplava a avaliação da gestão, de estrutura e de ações relacionadas. Em 2017, a PNAB foi novamente atualizada, destacando a promoção à saúde como um princípio para o cuidado em saúde. Em 2019, criou-se a carteira de serviços da APS, assumindo seus atributos essenciais e derivados como norteadores das ações que também contemplavam a área da alimentação e nutrição.
Além das estratégias realizadas na APS, existe um amplo leque de ações da PNAN, como a fortificação das farinhas com ferro e ácido fólico, a iodação do sal e a “Norma brasileira de comercialização de alimentos para lactentes e crianças de 1º infância, bicos, chupetas e mamadeiras”, que podem repercutir na saúde dos brasileiros e diminuir os agravos relacionados à alimentação inadequada, além de reduzir a demanda da APS. Ademais, esforços têm sido feitos para a adoção de medidas regulatórias que podem, a longo prazo, reduzir a obesidade e outras doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) no país, como a regulação da publicidade e a rotulagem nutricional frontal dos alimentos, a restrição na venda de alimentos em cantinas escolares e a tributação de bebidas adoçadas
As ações de gestão, vigilância alimentar e nutricional, promoção da alimentação adequada e saudável, atenção nutricional e formação são apresentadas a seguir.
Gestão
No período analisado, a agenda de alimentação e nutrição foi priorizada em instrumentos de gestão federal. Na primeira década (2000 a 2011) o foco das ações foi o combate à fome, prevenção das doenças e carências nutricionais. Na segunda década, observou-se uma ampliação do escopo para prevenção da obesidade e promoção da alimentação adequada e saudável. O orçamento da CGAN evoluiu de forma crescente nestes anos e é uma das bases fundamentais para promover ações e iniciativas de alimentação e nutrição na APS pelo Governo Federal, seja por meio de execução direta de ações federais ou por repasse aos demais entes federados. A transferência de recursos aos estados e municípios também pode induzir a priorização das ações em âmbito local. Além do apoio financeiro, uma rede de gestores de alimentação e nutrição foi constituída, envolvendo gestores da APS em âmbito local subsidiados pela gestão federal.
Vigilância alimentar e nutricional
A vigilância alimentar e nutricional permite às equipes da APS avaliar as condições de saúde e nutrição da população e, com base no diagnóstico, propor ações necessárias. A informatização do SISVAN, em 2003, foi um marco para a padronização e expansão do sistema na APS. A fim de contornar ou minimizar limitações de coberturas e dificuldades operacionais, foi desenvolvida, em 2008, a plataforma online SISVAN-web, alimentada diretamente pelas Unidades básicas de saúde (UBS). O SISVAN-web incorporou marcadores de consumo alimentar e índices antropométricos recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A análise durante o período revela uma evolução favorável e significativa da cobertura do SISVAN.
Promoção da alimentação adequada e saudável
Para organização das ações de promoção da alimentação adequada e saudável na APS, destaca-se a publicação dos guias alimentares. Em 2002, foi publicado o primeiro “Guia Alimentar para crianças brasileiras menores de dois anos” e em 2006 o primeiro “Guia Alimentar para a população brasileira”. Em 2014, o “Guia alimentar para a população brasileira” foi revisado e em 2019, para alinhá-lo às novas evidências científicas, o “Guia alimentar para crianças menores de dois anos” também foi revisado. Para a implementação do “Guia Alimentar para crianças brasileiras menores de dois anos” na APS, em 2008, foi criada a Rede Amamenta Brasil e, em 2009, a Estratégia Nacional de Alimentação Complementar Saudável. Ambas foram unificadas em 2013, culminando na Estratégia Amamenta e Alimenta Brasil. Diversos materiais também foram publicados para induzir a implementação do “Guia alimentar para a população brasileira” na APS.
Atenção nutricional: múltipla carga de má nutrição
Para o manejo da desnutrição na APS, em 2005, foi publicado o protocolo para o cuidado da criança com desnutrição, em âmbito hospitalar. Em 2012, foi instituída a Intensificação da Atenção Nutricional à Desnutrição Infantil (ANDI), voltada para o enfrentamento da desnutrição em 256 municípios que apresentavam prevalência de baixo peso superior a 10%, prevendo repasse de recursos, pactuação de metas e qualificação de ações.
Para o controle das deficiências de micronutrientes, em 2005, foram revistos e instituídos programas de suplementação em âmbito nacional, como o Programa Nacional de Suplementação de Ferro e o Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A, ambos capilarizados na APS.
No decorrer dos 20 anos analisados, os inquéritos nacionais mostraram redução da desnutrição e aumento expressivo da obesidade em todos os ciclos da vida, o que levou à PNAN a incorporar novas ações para o seu controle. Entre 2006 e 2007, publicaram-se os primeiros marcos para a estruturação das ações de prevenção e controle da obesidade no SUS, na APS. Com a instituição da Rede de Doenças Crônicas e da Linha de Cuidado do Sobrepeso e Obesidade, em 2013, intensificou-se o processo de organização da prevenção e tratamento do excesso de peso. Na agenda da obesidade infantil, em 2017 foi lançado o “Crescer saudável” com o objetivo de identificar as crianças com excesso de peso, por meio das equipes da APS, e ofertar ações de cuidado.
Formação
Para a formação, destacam-se três períodos importantes. O primeiro (1999-2006) foi marcado pela formação de gestores e profissionais da APS, com destaque aos “Centros Colaboradores em Alimentação e Nutrição (CECAN)”, que conduziram capacitações sobre a gestão dos programas e da vigilância alimentar e nutricional. O segundo período (2007-2014) foi marcado pela oferta de cursos de especialização para gestores locais de saúde e profissionais da APS, além da institucionalização do CECAN. No terceiro período (2015-2019) novas estratégias foram adotadas como: seleção pública para financiamento de projetos de pesquisa, extensão e formação de profissionais da APS, elaboração de curso sobre ações de promoção de alimentação adequada e saudável na APS e cursos livres e de especialização para a formação e a qualificação em obesidade.
O estudo conclui que a agenda em alimentação e nutrição na APS evoluiu com o intuito de responder aos principais agravos relacionados à alimentação e nutrição no país. A universalização das ações em âmbito local ainda constitui um desafio importante e a múltipla carga de má nutrição demanda articulação intersetorial, que pode ser potencializada na APS. Embora o aprimoramento da alimentação e nutrição na APS deva ocorrer baseado em evidências científicas, há lacunas importantes na proposição de intervenções inovadoras, viáveis e efetivas, na avaliação de ações e programas, especialmente os relacionados à obesidade, necessidades alimentares especiais e terapia nutricional na APS.