Mudanças nos padrões alimentares, como maior consumo de alimentos e bebidas ultraprocessadas e menor consumo de alimentos tradicionais, são importantes determinantes da obesidade e doenças crônicas relacionadas.
Nesse cenário, alimentos ultraprocessados têm dominado os sistemas alimentares atuais, influenciando as decisões de compra da família e a disponibilidade de alimentos em casa. A formulação destes alimentos permite que sejam consumidos a qualquer hora e em qualquer lugar, geralmente como lanches, bebidas e pratos prontos, o que pode contribuir para desorganizar as refeições e deslocar os preparos da cozinha em casa. Além disso, como estratégias de marketing, esses produtos são dotados de embalagens atraentes, alegações de saúde e uso de personagens e desenhos animados. Alimentos ultraprocessados são, em geral, desequilibrados nutricionalmente, densos em energia, com alto teor de gordura e açúcar, o que parece estar particularmente relacionado ao comportamento alimentar do tipo viciante. Além disso, tem sido sugerido que estes podem afetar as estruturas gástricas e cerebrais que regulam a saciedade, o apetite e o balanço energético, levando a consumo excessivo e ganho de peso.
Nesse sentido, para compreender melhor as relações entre consumo alimentar e obesidade em crianças e adolescentes, um estudo realizado em Portugal objetivou identificar a contribuição de alimentos ultraprocessados aos 4 e 7 anos de idade e avaliar sua associação com comportamentos apetitivos aos 7 anos de idade. Também foi investigado se os comportamentos apetitivos aos 7 anos são mediadores para um aumento do IMC aos 10 anos.
Participaram deste estudo crianças integrantes da coorte de nascimentos de base populacional Geração XXI, que forneceram diários alimentares e dados completos sobre variáveis sociodemográficas, medidas antropométricas e o Questionário de Comportamento Alimentar Infantil Português (P-CEBQ). As crianças e suas respectivas mães foram recrutadas em todas as maternidades públicas que eram responsáveis na época por 91,6% dos partos em toda a população de abrangência. As mães foram convidadas a participar 24 a 72 horas após o parto e houve boa taxa de aceite: 91% das mães convidadas aceitaram participar. Os acompanhamentos de toda a coorte ocorreram quando as crianças tinham 4, 7 e 10 anos de idade. Foram excluídos gêmeos, crianças com anomalias congênitas ou doenças que pudessem influenciar a ingestão alimentar, além de crianças que não tinham dados sobre as variáveis de interesse, obtendo uma amostra final de 1175 crianças. Os dados foram coletados por entrevistadores treinados por meio de questionários estruturados ou por questionários autorreferidos preenchidos pelo principal cuidador da criança.
Em relação ao consumo alimentar, os cuidadores principais foram solicitados a relatar todos os alimentos e bebidas consumidos pela criança e fornecer descrições detalhadas de cada item, incluindo a quantidade (em g, unidades ou medidas caseiras), marca, receitas (ingredientes e modo de preparo) e local de refeição, quando possível. Os alimentos e bebidas foram classificados de acordo com a natureza, extensão e finalidade do processamento industrial, com base no sistema de classificação de alimentos NOVA. Os grupos 1 e 2 foram agrupados e consistiam em alimentos não processados ou minimamente processados, ingredientes culinários e preparações culinárias. O Grupo 3 compreendeu alimentos processados e o grupo 4 foi composto por alimentos ultraprocessados. Para cada grupo, foi calculada a quantidade total consumida de cada alimento ou bebida e o total foi expresso em porcentagem da ingestão diária de energia e em calorias.
Os comportamentos alimentares das crianças foram avaliados por meio do questionário P-CEBQ, que mede as características apetitivas em crianças e foi previamente testado na coorte Geração XXI. O questionário é composto por 35 itens agrupados em 8 subdomínios, 4 avaliando comportamentos de aproximação alimentar: ‘Apreciação da comida’ (representando um interesse geral pela comida), ‘Responsividade à comida’ (medindo a ingestão em resposta a sinais externos dos alimentos), ‘Comer demais emocionalmente’ (caracterizado pelo aumento da alimentação em resposta a emoções negativas, como raiva e ansiedade) e ‘Desejo de beber’ (avaliando o aumento do desejo de beber); e quatro comportamentos de evitação alimentar: ‘Responsividade à saciedade’ (refletindo a capacidade de regular a quantidade de comida ingerida, com base na sensação de saciedade), ‘Lentidão ao comer’ (medindo a velocidade de comer durante uma refeição e refletindo uma redução gradual interesse em uma refeição), ‘Agitação alimentar’ (medindo a falta de interesse em alimentos e falta de vontade de experimentar novos alimentos) e ‘Comer de menos emocionalmente’ (caracterizado por diminuição da alimentação em resposta a emoções negativas).
Já as medidas antropométricas dos participantes foram realizadas nas idades de 4, 7 e 10 anos por uma equipe de examinadores experientes, de acordo com procedimentos padrão.
Os achados desta pesquisa apontaram para um nível razoável de estabilidade do consumo de alimentos ultraprocessados entre as idades de 4 e 7 anos, correspondendo, respectivamente, a 27,3 e 29,3% da ingestão total de energia. Após o ajuste para características maternas e infantis, o maior consumo de ultraprocessados aos 4 anos foi associado diretamente à ‘Responsividade à comida’ e indiretamente, via ingestão de energia, às características de evitação: ‘Agitação alimentar’ e ‘Responsividade à saciedade’.
O consumo de ultraprocessados aos 4 anos foi associado ao IMC aos 10 anos, após ajuste para fatores de confusão, mas os comportamentos apetitivos aos 7 anos não foram mediadores dessa associação. Além disso, o consumo de alimentos ultraprocessados aos 4 anos de idade foi positivamente associado a escores mais altos de exigência alimentar aos 7 anos de idade, independentemente das características da criança e da mãe. Este achado confirma evidências anteriores de que crianças que exibem padrões alimentares menos saudáveis no início da vida podem mais tarde ter alguns comportamentos alimentares problemáticos relacionados ao apetite.
Foi observado que contribuição energética dos alimentos ultraprocessados para a dieta de crianças em idade pré-escolar e escolar em Portugal foi menor do que a encontrada para outras populações. No entanto, ainda que o consumo de ultraprocessados das crianças portuguesas seja relativamente baixo em comparação com outras populações infantis de países de renda alta e tenha apresentado estabilidade ao longo do período analisado, o ligeiro aumento do consumo deve ser considerado alarmante porque pode limitar o consumo de refeições caseiras feitas a base de alimentos in natura ou minimamente processados. Além disso, padrões alimentares ricos em alimentos altamente energéticos estão associados a um maior peso, como já mostrado por outros estudos realizados com crianças.
Este foi o primeiro estudo a investigar prospectivamente, dentro de uma grande amostra de base populacional, a relação entre consumo de alimentos ultraprocessados, comportamentos apetitivos e IMC em crianças. Os autores sugerem que novas pesquisas sejam feitas a fim de investigar as possíveis mudanças nos padrões alimentares resultantes do aumento do consumo de ultraprocessados e se estas se estendem até o final da infância e adolescência.