Implicações sociais, clínicas e políticas da dependência de alimentos ultraprocessados

Tributação de tabaco, álcool e bebidas açucaradas: revendo evidências e dissipando mitos
5 de dezembro de 2023
Frequência de cozinhar o jantar em casa, consumo de alimentos ultraprocessados e a qualidade da dieta
19 de dezembro de 2023

Embora a dependência por determinados alimentos não esteja incluída nos quadros de diagnósticos, como o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana e Psiquiatria), as pesquisas sobre esse tema têm crescido expressivamente nos últimos 20 anos. Nesse contexto, um artigo aborda as questões sociais, clínicas e políticas relacionadas a dependência de alimentos ultraprocessados.  

Uma análise recente de duas revisões sistemáticas, conduzidas com 281 estudos de 36 países diferentes, constatou que a prevalência de 14% de dependência alimentar entre adultos e 12% entre crianças. Tal resultado é semelhante aos níveis de dependência observados para outras substanciais legais em adultos (14% para o álcool e 18% para o tabaco, por exemplo). O cenário é ainda mais grave entre pessoas com obesidade submetidas à cirurgia bariátrica ou com transtorno de compulsão alimentar, entre as quais a dependência alimentar chegou a 32 e 50%, respectivamente. Portanto, há um suporte convergente e consistente para a validade e a relevância clínica da dependência alimentar, permanecendo como uma questão mais aberta quais os tipos de alimentos que causam dependência.

É importante ressaltar que nem todos os alimentos têm potencial de causar dependência. Os alimentos com altos níveis de carboidratos refinados ou gorduras adicionadas são mais relacionados aos comportamentos de dependência. Isso ocorre porque tais alimentos levam a níveis semelhantes de dopamina que são observados com a utilização de substâncias que causam dependência, como a nicotina e o álcool. A combinação de carboidratos refinados e gorduras parece afetar o sistema de recompensa cerebral e aumentar o vício potencial desses alimentos; ademais, a velocidade com que esses alimentos fornecem carboidratos e gorduras para o intestino e a presença de aditivos alimentares também são possíveis fatores que levam a dependência.  Um ponto crucial de debate são os critérios para identificar os alimentos com potencial de causar dependência. A classificação NOVA, ferramente que identifica os alimentos ultraprocessados, é ampla e pode captar alimentos que não apresentam pontencial viciante. Já preparações caseiras que utilizem ingredientes culinários como açúcar e manteiga podem ser viciantes (por exemplo, biscoitos doces caseiros) e não seriam considerados como alimentos ultraprocessados. Contudo, em sua maioria, alimentos ultraprocessados com altos níveis de carboidratos refinados e gorduras são mais acessíveis, convenientes e fortemente comercializados do que as versões caseiras e são portanto, um impulsionador mais potente de ingestão alimentar viciante.

Questões sociais também precisam ser consideradas no contexto da dependência de alimentos ultraprocessados. Em alguns países, estes alimentos são uma importante fonte de calorias para uma expressiva parcela da população. Mesmo dentro de um mesmo país, o ambiente alimentar não é equitativo e os mercados de alimentos em bairros desfavorecidos são frequentemente dominados por alimentos ultraprocessados, e limitados em alimentos naturais. Assim, indivíduos em situação de insegurança alimentar muitas vezes buscam por alimentos ultraprocessados para satisfazer as suas necessidades energéticas diárias, estando assim em maior risco para a dependência alimentar. Nesse cenário, são essenciais abordagens políticas que promovam maior acesso a alimentos naturais e minimamente processados, de forma adequada, saborosa e financeiramente acessível, além de limitarem as práticas de promoção dos alimentos ultraprocessados realizadas pela da indústria.

Ainda, a dependência de alimentos ultraprocessados em pessoas com obesidade ou distúrbios alimentares está associada a quadros clínicos mais graves, incluindo níveis mais elevados de doenças relacionadas a alimentação, maior psicopatologia geral, menor funcionalidade cognitiva e pior resposta ao tratamento. O reconhecimento do diagnóstico de dependência alimentar poderia auxiliar no acesso ao suporte e tratamento adequados para reduzir padrões compulsivos de ingestão de alimentos ultraprocessados.

Evidências sugerem que os medicamentos usados para tratar transtornos por uso de substâncias podem reduzir os sintomas da dependência por alimentos ultraprocessados. Já os modelos de tratamento de dependência em doze passos, como aquele adotado pelo Overeaters Anonymous (Comedores Compulsivos Anônimos, no Brasil) foram escassamente estudados. Por fim, as possibilidades de tratamento para dependência de alimentos ultraprocessados ainda necessitam de uma avaliação mais aprofundada.

Em conclusão, considerar que os alimentos ultraprocessados não causam dependência pode atrasar a implementação de ações e políticas necessária para o enfrentamento desta questão. É importante lembrar que adequadamente classificação dos cigarros como viciantes aumentou o foco na culpabilidade da indústria e apoiou processos judiciais, regulatórios e esforços políticos que foram eficazes na redução do uso do tabaco em todo o mundo. Tendo como experiência as epidemias de dependência enfrentadas no passado, fica evidente a necessidade de uma ação multifacetada para abordar a disseminação de alimentos ultraprocessados com potencial de causar dependência.

Compartilhar

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *