A desnutrição e o excesso de peso já foram considerados problemas de saúde pública distintos. No entanto, a coexistência desses dois agravos nutricionais é atualmente reconhecia e sua ocorrência tem aumentado, gerando impactos na sociedade. Esse fenômeno é resultado de profundas desigualdades sociais e tende a se concentrar em populações de baixo nível socioeconômico. Estimativas globais indicam que cerca de 2,3 milhões de crianças e adultos têm excesso de peso e que mais de 150 milhões de crianças sofrem de desnutrição.
No Brasil, ocorreram avanços importantes nos últimos anos em relação ao enfrentamento da desnutrição, como a redução da desnutrição infantil aguda para menos de 2% e a saída do país do mapa da fome em 2014. Por outro lado, a prevalência de excesso de peso vem aumentando significativamente no país sendo atribuída, principalmente, à alimentação inadequada e à inatividade física.
Com o objetivo de analisar a carga global de doenças atribuíveis à má nutrição no Brasil e seus 27 estados e a sua correlação com o índice sociodemográfico (ISD), no período de 1990 a 2019, foi desenvolvido um estudo epidemiológico de série temporal. O estudo faz parte do Global Burden of Diseases (GBD), um estudo colaborativo multinacional composto por 204 países e territórios, que fornece estimativas anuais e permite comparações precisas ao longo dos anos.
Para o presente estudo, foram consultadas mais de 200 fontes de dados, incluindo o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), além de estudos nacionais de coorte.
Os parâmetros para avaliação da desnutrição incluíram baixo peso ao nascer, curto período gestacional, déficit no crescimento infantil, amamentação subótima, deficiências de ferro, vitamina A e zinco. O índice de massa corporal (IMC) foi considerado elevado quando superior a 20–25 kg/m (para adultos) e para crianças e adultos jovens (1–19 anos) com base nos padrões da Força Tarefa Internacional para a Obesidade.
Foi calculada a carga global de doenças atribuíveis à desnutrição e ao IMC elevado e avaliada a correlação entre as taxas de mortalidade e o ISD de cada região.
No período analisado (1990 a 2019), houve redução no número de mortes, taxa de mortalidade e anos de vida perdidos ajustados por incapacidade atribuíveis à desnutrição no Brasil e em todas as suas regiões. Já em relação ao IMC elevado, observou-se aumento expressivo no número de óbitos (139%), enquanto a taxa de mortalidade e os anos de vida perdidos ajustados por incapacidade diminuíram em todas as regiões, com exceção das regiões Norte e Nordeste que apresentaram aumento, principalmente entre as mulheres.
Analisando os resultados por sexo e idade foi observado que a taxa de mortalidade por desnutrição foi maior nas crianças (<5 anos) e nos idosos (>60 anos) e diminuiu entre 1990 e 2019, enquanto os anos de vida perdidos ajustados por incapacidade, embora mais concentradas em <5 anos, ocorrem ao longo da vida e diminuem ao longo do período, em ambos os sexos. As taxas de mortalidade por IMC elevado aumentam após os 55 anos e as taxas de anos de vida perdidos ajustados por incapacidade aumentam após os 44 anos em ambos os sexos.
Foi observado que, em 1990, a carga de doenças atribuíveis à desnutrição era maior, o que se inverteu em 2019, com predominância da carga de doenças devido ao IMC elevado. Em 2019, embora tenha havido um aumento no número absoluto de óbitos, as taxas de mortalidade atribuídas ao IMC elevado diminuíram relativamente em relação às doenças cardiovasculares e às doenças respiratórias crônicas. Contudo, houve aumento de causas como diabetes, neoplasias e doenças neurológicas devido ao IMC elevado.
Observou-se uma forte correlação entre a desnutrição e o ISD, indicando que estados com baixo índice apresentaram uma diminuição maior na desnutrição entre 1990 e 2019 e do que os estados com alto índice. Para o IMC elevado, ocorreu um declínio na variação percentual à medida que o ISD aumentou, ou seja, nos estados mais pobres houve um aumento na mortalidade por IMC elevado entre 1990 e 2019, enquanto estados mais ricos observaram queda nas taxas de mortalidade.
As tendências gerais da dupla carga de má nutrição podem ser atribuídas principalmente às rápidas transições na alimentação em todo o mundo, caracterizada pelo aumento do consumo de alimentos ultraprocessados e pela diminuição no consumo de alimentos naturais e frescos, incluindo frutas e vegetais, e resultando no aumento da prevalência da obesidade. Soma-se a esse cenário a inatividade física e o sedentarismo, cuja prevalência, embora tenha diminuído de 2013 para 2019, ainda é elevada no país.
O decréscimo da mortalidade associada a desnutrição pode ser atribuído ao aumento da cobertura do saneamento, à melhoria da imunização e ao aumento da cobertura de programas de proteção social, como o Bolsa Família. Dessa forma, para a superar a dupla carga de má nutrição são necessárias políticas públicas que visem reduzir as desigualdades sociais e que garantam o direito humano à alimentação saudável e sustentável, bem como à segurança alimentar e nutricional.