Em 1948, a Organização Mundial de Saúde reconheceu a obesidade como uma “doença crônica complexa”. Entretanto, a concepção da obesidade como uma doença é controversa dentro e fora da comunidade científica, o que traz implicações profundas para a prática clínica, saúde pública e sociedade.
Por um lado, aqueles que defendem a definição da obesidade como uma doença acreditam que isso forneceria uma legitimidade médica e cultural mais forte à condição e, por isso, aumentaria o acesso ao atendimento e poderia reduzir o estigma social. Por outro lado, emerge a discussão de que o Índice de Massa Corporal (IMC), adotado para a identificação e classificação da obesidade, não fornece informações sobre a saúde de um indivíduo e a definição geral de obesidade como uma doença implicaria em um alto risco de excesso de diagnóstico. Visto que a obesidade é uma condição altamente heterogênea, muitas pessoas com excesso de adiposidade não apresentam sinais e sintomas de doença crônica, resultando em um uso injustificado de medicamentos e procedimentos cirúrgicos com custos e repercussões negativas nos níveis clínico, econômico e político.
No contexto populacional, o IMC é bastante útil e parece ser suficiente para monitorar o estado nutricional de populações. No entanto, do ponto de vista individual e clínico, a definição atual de obesidade pode não fornecer uma caracterização clara da doença induzida pela obesidade em si, carecendo de sensibilidade e especificidade suficientes para o seu uso clínico. O efeito clínico da obesidade se concentra nos riscos da adiposidade em desenvolver outras doenças, justificando, assim, preocupações sobre uma definição geral de obesidade como um estado de doença.
Diante desse cenário, uma Comissão do The Lancet (importante periódico científico internacional) foi criada para propor critérios clínicos e biológicos a serem adotados para definição de obesidade clínica que, semelhante aos métodos diagnósticos para outras doenças crônicas, refletem a doença em andamento. A Comissão foi composta por 58 membros, dentre eles clínicos, acadêmicos e pesquisadores com expertise em obesidade, representando várias especialidades médicas e países, além de pessoas que vivem com obesidade. Os membros da Comissão tiveram reuniões mensais, entre junho de 2022 e dezembro de 2024, para desenvolvimento do consenso estabelecido nesta publicação.
Houve uma forte concordância entre os membros da Comissão (98%) de que o uso do IMC deve ser restrito à triagem de indivíduos com obesidade potencial, enquanto medidas adicionais de adiposidade são essenciais para confirmar a presença de obesidade (caracterizada pelo excesso de adiposidade) no nível clínico. Entretanto, as medidas antropométricas isoladas não são consideradas uma medida robusta de doença em curso.
Em sua proposta, a Comissão defende que a obesidade deve ser definida como uma condição caracterizada pelo excesso de adiposidade, com ou sem função anormal do tecido adiposo. A obesidade pode ser definida como clínica ou pré-clínica, baseada na presença ou ausência, respectivamente, de alterações sintomáticas na função dos órgãos ou comprometimento da capacidade de um indivíduo de conduzir atividades diárias. Ainda, é recomendado que o IMC seja usado apenas como uma medida substituta de risco à saúde em nível populacional, para estudos epidemiológicos, ou para triagem, e não como uma medida individual de saúde. Contudo, em pessoas com o IMC acima de 40kg/m2, o excesso de adiposidade pode ser assumido, sem necessidade de confirmação adicional.
Considerando os critérios propostos pela Comissão, para a definição de obesidade clínica, duas condições devem ser atendidas: o acúmulo excessivo de gordura (componente antropométrico) e os efeitos da adiposidade na saúde, como alterações funcionais de órgãos e tecidos (componente clínico). Embora a obesidade também possa causar alterações na estrutura do órgão (como o fígado gorduroso), foi acordado que tais alterações estruturais por si só geralmente não são suficientes para causar manifestações clínicas importantes se a função normal do órgão for preservada.
Embora a obesidade clínica possa ser considerada como um estado de doença, a obesidade pré-clínica não seria, necessariamente um estado de pré-doença. Uma vez que a obesidade pré-clínica (fenótipo de obesidade) é uma condição heterogênea, esta pode representar tanto um estágio anterior da obesidade clínica (sendo neste caso um estado pré-doença), ou um fenótipo físico com menor tendência a afetar a função dos órgãos ou um sinal de outras doenças ou efeito colateral de medicamentos. Portanto, a probabilidade e a taxa de progressão da obesidade pré-clínica são desconhecidas e requerem investigação.
Apesar do estadiamento da obesidade clínica e pré-clínica estarem além do escopo deste posicionamento, a Comissão sugere que os sistemas de estadiamento para obesidade clínica, refletindo o efeito da doença na qualidade de vida e no prognóstico, podem facilitar as escolhas de tratamento. Além disso, sistemas de classificação ou pontuação para a obesidade pré-clínica também devem ser desenvolvidos para avaliar o risco de progressão e auxiliar a tomada de decisão clínica.
Na prática clínica, o tratamento da obesidade clínica deve ser pautado na melhora (ou remissão, quando possível) das manifestações clínicas existentes, enquanto o objetivo do tratamento da obesidade pré-clínica deve ser de cunho profilático, baseado na redução do risco de progressão para a obesidade clínica. Essa distinção tem implicações importantes também para os ensaios clínicos e para a formulação de políticas públicas. Para a obesidade clínica, o foco das políticas públicas deve ser a garantia de acesso adequado e equitativo aos tratamentos disponíveis para obesidade, considerando os indivíduos como portadores de uma doença crônica e potencialmente fatal. Já para as pessoas com obesidade pré-clínica, as políticas públicas devem garantir o acesso adequado e equitativo à avaliação diagnóstica do risco à saúde, monitoramento do estado de saúde ao longo do tempo e tratamento apropriado com a intenção de reduzir o risco de progressão para obesidade clínica e outras doenças e condições de saúde associadas.
Algumas limitações deste posicionamento pontuadas no documento foram: a maioria dos membros da Comissão serem de países de alta renda (EUA e países da Europa), com poucos representantes de países de média e baixa renda. Além disso, a avaliação de evidências incluiu uma ampla gama de tópicos relacionados à obesidade, mas se baseou em revisões narrativas e avaliação de evidências por especialistas, em vez de revisões sistemáticas e meta-análises.
A Comissão The Lancet reconhece que fatores culturais, sociais e políticos influenciam como a obesidade é percebida, gerenciada e priorizada em cada país e, por isso, cada país tem um desafio específico para lidar com esta condição. Além disso, acreditam que essa abordagem proposta pode apresentar desafios como inconsistências na prática clínica, acesso limitado a ferramentas de diagnóstico e variabilidade na interpretação de sintomas. Sugerem pesquisas futuras, que são essenciais para melhorar a seleção de critérios diagnóstico para obesidade clínica e desenvolver biomarcadores confiáveis que possam simplificar e padronizar o processo de diagnóstico no futuro.
Por fim, a Comissão defende que o termo “obesidade clínica” comunica que a obesidade pode ser uma doença séria e não uma mera escolha de estilo de vida e acredita que tal reformulação possa informar políticas de saúde pública, facilitar a identificação de estratégias de prevenção versus tratamento e contribuir para conceitos errôneos que reforçam o preconceito e estigma baseados no peso.
É importante destacar que a proposta apresentada pela Comissão The Lancet reporta importantes conflitos de interesse. O comentário The Lancet’s obesity recommendations: conflicted interests? publicado no Food Politics by Marion Nestle apontou que, dos 56 autores da proposta, 47 declararam algum conflito de interesse, incluindo vínculos financeiros com empresas farmacêuticas. A Novo Nordisk (Ozempic, Wegovy) é mencionada por 38 autores e Eli Lilly (Zepbound) por 27 autores. Outras indústrias também são nomeadas por diferentes autores. Considerando os conflitos de interesses reportados, as conclusões apresentadas pela Comissão exigem análise criteriosa e ampla discussão com a comunidade científica.