Obesidade infantil e atribuições do Estado

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Apesar de importantes conquistas nas políticas públicas influenciarem significativamente o acesso à alimentação nos últimos anos no Brasil, a ação política corporativa do setor da indústria de alimentos opera transnacionalmente e impulsiona o consumo de alimentos ultraprocessados, que por sua vez contribuem para a crescente prevalência do excesso de peso e da obesidade e da incidência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT).

Um conjunto de ações é proposto pelo governo brasileiro para a Promoção da Alimentação Adequada e Saudável (PAAS), formalizadas por meio da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) e da Política Nacional de Promoção da Saúde, além dos Guias Alimentares para população brasileira e para crianças menores de dois anos. Entretanto, o processo de implementação de políticas e ações é condicionado pelas ideias em disputa sobre atribuições do Estado e dos governos, e sobre os limites de intervenção estatal na vida privada e nos setores, especialmente na regulação das práticas produtivas e comerciais da indústria.

Considerando a relevância deste debate, um estudo publicado em 2020analisou as ideias em disputa em torno das atribuições do Estado (o que deve ser feito e quais os limites para atuação na esfera privada), no âmbito das políticas de alimentação e nutrição voltadas para a prevenção e o controle da obesidade infantil no Brasil, especialmente no que se refere à PAAS.

O estudo foi pautado na abordagem cognitiva de análise de políticas que considera que as ideias que mobilizam o processo político são dinâmicas e condicionadas pelas instituições de interesse em disputa. Os métodos utilizados foram análise documental e entrevista semiestruturada. Foram entrevistados integrantes dos espaços de participação e controle social da PNAN no âmbito do SUS e da PNAN no âmbito do sistema nacional de segurança alimentar e nutricional, totalizando 20 depoentes (10 atuam nas instituições do estado/governo, 9 na sociedade civil e 1 no setor privado comercial).

A ideia prevalente nas narrativas e documentos de políticas públicas é que a obesidade é um problema de saúde pública multicausal condicionado principalmente por fatores ambientais modificáveis. Os depoentes do Estado e da sociedade civil organizada destacaram o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, o lazer sedentário e a influência da mídia, enquanto o setor privado comercial ressaltou elementos do comportamento “individualizado”, como o sedentarismo e a entrada da mulher no mercado de trabalho. A abordagem da obesidade como questão social foi pouco problematizada pelos depoentes que atuam na área da saúde, ainda que repercuta na discussão sobre as atribuições do Estado.

O Estado foi apontado por todos os depoentes como principal responsável para enfrentar o problema da obesidade infantil, entretanto, cada segmento conferiu um peso diferente às suas atribuições uma vez que as ideias em disputa são condicionadas pelo contexto institucional em que estão inseridos e pelos interesses em pauta.

As ideias e os argumentos do setor privado comercial, observados tanto nas entrevistas quanto nos documentos analisados, são pautados na concepção de que cabe aos pais ou ao próprio indivíduo realizar suas escolhas alimentares sem nenhuma interferência do Estado, reduzindo uma questão ampla, complexa e socialmente condicionada à questão de opção individual ou familiar. Este argumento isenta o setor privado de responsabilidade sobre as suas práticas que fomentam o consumo de ultraprocessados e contribuem para a ocorrência de DCNT. Por outro lado, o setor privado considera que os indivíduos carecem de informação, conhecimento e habilidades para evitar a obesidade e, além de se isentar de qualquer responsabilidade, atribui ao consumidor a culpa pelo consumo de alimentos por ele anunciados e consequentemente, pela condição de saúde decorrente do consumo, assumindo, segundo os autores do estudo, uma postura antiética e contraditória com suas práticas mercadológicas que estimulam o consumo excessivo.

Para os depoentes da sociedade civil organizada, estratégias regulatórias devem ser igualmente adotadas, especialmente para atingir populações mais vulneráveis que nem sempre tem condições de acessar as fontes de informação disponibilizadas. Para este público, o “empoderamento” da população é necessário, entretanto, insuficiente se não coexistirem, no mesmo cenário, políticas públicas que atuem nos ambientes.

A fala dos depoentes que atuam no governo foi condicionada pelo lugar na estrutura organizacional da instituição a qual se encontrava. Alguns apostam que as medidas mais estratégicas para o enfrentamento da obesidade são aquelas que ferem os interesses das indústrias de alimentos e setor publicitário, como a regulação da publicidade e a rotulagem frontal de alimentos e as medidas fiscais que impõem a taxação dos alimentos ultraprocessados. Outros depoentes, vinculados às mesmas instituições, mas que ocupam cargos de direção ou coordenação de áreas técnicas ou programas, defendem formas de enfrentamento da obesidade que não impliquem em restrições das atividades do setor privado comercial e que não criem tensionamentos entre o governo e este setor.

Embora o texto constitucional defina que o Estado deve assegurar o direito à saúde e à alimentação, as diferentes concepções sobre as ações do Estado para o enfrentamento da obesidade infantil mostra uma tensão entre os que defendem mudanças menos “radicais” e incrementais e mudanças transformadoras. Assim, a maneira como a obesidade é concebida e os argumentos propostos para a sua prevenção e controle apontam para alternativas diferenciadas de intervenção de acordo com os interesses dos setores.

A análise das concepções sobre a obesidade infantil e o papel do Estado sugere que os embates são moldados por interesses divergentes, mas os conflitos, especialmente entre a sociedade civil organizada e o setor privado comercial, podem indicar que algumas Instituições do Estado atuam como um pêndulo que ora se inclina para beneficiar os interesses do mercado e ora se inclina na direção da sociedade.

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