Nas últimas décadas, a obesidade e as doenças crônicas relacionadas à alimentação têm sido consideradas problemas de saúde pública em todo o mundo. Em Portugal, mais de 20% da população tinha obesidade em 2015–2016, sendo esta prevalência quase duas vezes superior nos idosos. Além disso, em 2017, 88% das mortes no país estiveram relacionadas com doenças crônicas não transmissíveis (DCNT).
Vários estudos, incluindo um ensaio clínico aleatorizado, já mostraram a associação entre o consumo de alimentos ultraprocessados e DCNT. Tal associação pode ser explicada em partes pela influência negativa do consumo de alimentos ultraprocessados na qualidade da dieta. O presente estudo teve como objetivo investigar a participação de alimentos ultraprocessados e sua associação com o perfil de nutrientes da alimentação relacionados às DCNT em populações adultas e idosas em Portugal.
Foram utilizados dados do Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física da População Portuguesa (IAN-AF 2015– 2016), incluindo adultos (≥18 e <65 anos) e idosos (>65 anos). A amostra total foi composta por 3.852 indivíduos, sendo 3.102 adultos e 750 idosos. No IAN-AF 2015-2016, a ingestão alimentar foi avaliada por dois recordatórios de 24 horas não consecutivos, aplicados com intervalo de 8 a 15 dias. Todos os itens alimentares relatados foram identificados de acordo com a extensão e o propósito do processamento de alimentos utilizando a classificação NOVA.
A ingestão energética diária média da população portuguesa com 18 anos ou mais foi de 1.842 kcal, sendo 42,0% derivada de alimentos não processados ou minimamente processados, 11,8% de ingredientes culinários processados, 24,0% de alimentos processados e 22,2% de alimentos ultraprocessados. Entre os adultos, a ingestão média diária de energia foi de 1.904 kcal, sendo 41,8% derivada de alimentos não processados ou minimamente processados, 11,7% de ingredientes culinários processados, 22,7% de alimentos processados e 23,8% de alimentos ultraprocessados. Entre os idosos, a ingestão energética diária média foi de 1.603 kcal, sendo 42,7% derivada de alimentos não processados ou minimamente processados, 12,3% de ingredientes culinários processados, 29,0% de alimentos processados e 16,0% de alimentos ultraprocessados.
Os alimentos ultraprocessados mais comuns foram iogurte e bebidas lácteas (3,4%), salsichas e outros produtos cárneos reconstituídos (3,2%), bolos e sobremesas industriais (3,2%) e pães e torradas industriais (2,8%) entre os adultos, enquanto bolos e sobremesas industriais (2,5%), iogurte e bebidas à base de leite (2,1%), salsichas e outros produtos cárneos reconstituídos (1,9%) e snacks doces embalados (1,9%) foram mais comuns entre os idosos.
O estudo analisou, ainda, a participação energética de grupos e subgrupos de alimentos classificados pela NOVA, segundo quintos de consumo de alimentos ultraprocessados. A participação média na dieta de alimentos ultraprocessados variou de 6,5% para adultos e 2,9% para idosos (Q1) a 44,1 e 33,6% (Q5), respectivamente. A participação energética de todos os subgrupos de alimentos ultraprocessados aumentou significativamente do quinto inferior (Q1) para o mais alto (Q5), com os maiores aumentos vindo de alimentos prontos para consumo, pães industriais e alimentos embalados pré-preparados, para adultos, e alimentos prontos para consumo, alimentos pré-preparados embalados, cereais matinais, refrigerantes e bebidas adoçadas com açúcar, para idosos.
Em adultos, à medida que aumentou o consumo de alimentos ultraprocessados, a ingestão total de energia, a densidade energética da dieta e os teores de carboidratos, açúcares livres, gorduras totais e gorduras saturadas aumentaram significativamente, enquanto os teores de proteína, fibra e sódio diminuíram significativamente à medida que a participação dietética de alimentos ultraprocessados aumentou, mesmo após ajuste por variáveis sociodemográficas. Nos modelos ajustados, os maiores tamanhos de efeito significativo e positivo foram observados para açúcares livres, gorduras saturadas e densidade energética, com incremento de 184, 42 e 22% do Q1 para o Q5 de alimentos ultraprocessados, respectivamente. De maneira oposta, os tamanhos de efeito negativo significativos maiores foram observados para proteínas, potássio e fibras, com redução de 14, 18, 19% do Q1 para o Q5 de alimentos ultraprocessados, respectivamente.
Em idosos, com o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, os teores dietéticos de açúcares livres, gorduras totais e as gorduras saturadas aumentaram significativamente. Após o ajuste para fatores de confusão, as proteínas diminuíram significativamente à medida que a participação dietética de alimentos ultraprocessados aumentou. Os tamanhos de efeito mais altos entre associações significativas foram encontrados para açúcares livres e gorduras saturadas, com um incremento de 140 e 23% do Q1 para o Q5 de alimentos ultraprocessados, respectivamente.
Quanto às recomendações dietéticas para prevenir DCNT, o estudo descreveu a prevalência de ingestão inadequada de nutrientes na dieta geral e segundo quintos da participação dietética de alimentos ultraprocessados. Embora a prevalência de pessoas que excedem os limites superiores recomendados para sódio tenha atingido quase todos os indivíduos em ambas as faixas etárias, os limites inferiores recomendados para fibra alimentar e potássio não foram atingidos por cerca de metade ou mais da população. À medida que a participação de alimentos ultraprocessados aumentou, a prevalência de pessoas que excedem os limites superiores recomendados para açúcares livres e gorduras saturadas aumentou significativamente em adultos e idosos. A prevalência de ingestão inadequada de fibras e potássio também aumentou conforme o consumo de alimentos ultraprocessados aumentou no grupo de adultos.
Este estudo corrobora estudos anteriores ao revelar que o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados provoca a diminuição da qualidade da dieta, o que pode levar a DCNT relacionadas à alimentação. Nos adultos, esses resultados parecem ser mais impressionantes do que nos idosos, cuja variação entre os quintos não foi consistente ou significativa para a maioria dos indicadores nutricionais. É provável que o impacto dos alimentos ultraprocessados na dieta dos idosos seja minimizado pelo seu padrão alimentar como um todo, que pode ter preservado um consumo mais tradicional de alimentos.
Este cenário indica a necessidade de estratégias eficazes para reduzir o consumo de alimentos ultraprocessados e preservar hábitos culinários baseados em alimentos in natura ou minimamente processados para, assim, melhorar a qualidade da dieta e prevenir as DCNT relacionadas à alimentação.